Sara Monteiro

Por que escolhi o Mundo Aflora?

Às 8 horas estávamos na Fundação Casa do Bom Retiro.
Fomos muito bem recebidos, todas da administração estavam felizes por divulgarmos mais uma vez o projeto para as meninas.
Nós, do MUNDO AFLORA, estávamos ansiosas. Fazia tempo que o projeto era presencial, mas em decorrência da covid-19 todos os encontros foram on-line.
Para algumas de nós era a primeira vez, para outras significava uma questão de reencontro, era uma continuidade de projeto.
Eu mesma nunca havia estado por ali, apesar que este nome (antiga FEBEM) estar permeando minha adolescência.
Como todos, guardamos nossos pertences e passamos por detector de metais.
Então foi quando o barulho da grade deu azo à nossa entrada, e em questão de alguns passos senti o portão às minhas costas se fechar. Sim, eu estava ali dentro.
Quando entrei, me vi cercada por umas trinta meninas, todas organizadas com roupas de cores iguais, de meias e chinelos, e suas máscaras devidamente comportadas ao rosto.
A presidente do projeto começou a explicar porque estávamos ali. E mesmo sob o olhar tímido delas, aos poucos fomos explicando quem éramos e qual a função do nosso projeto.
Em questão de segundos, notou-se um primeiro sorriso, uma primeira interação. Sim, elas estavam conosco de corpo e alma.
– Ah, mais o que o projeto faz?
– Ele será aqui dentro ou quando a gente sair?
Perguntas, risadas aos montes, broncas porque todas queriam falar ao mesmo tempo. Sim, como toda adolescente, estavam amando interagir.
Quando perguntamos sobre sonhos, facilmente se manifestaram. Já tinham tudo definido, com toda certeza aquilo que saiu tão rapidamente, muito provável já teria sondado os seus devaneios frequentes.
“Quero ser médica”. “Eu quero ser cantora”. “E eu cabeleireira”. “Eu não, eu quero ser advogada…”
Seus olhos brilhavam.
Em meio a tantas manifestações sobre seus sonhos, pois este foi um dos momentos mais agitados entre nós, novamente me senti completamente imersa em minha adolescência, quatorze anos atrás.
Quatorze anos atrás… eu vivia na zona sul da capital paulista, próximo a Parelheiros. Quantas vezes andava pelo bairro, praticamente levitando de tanto sonhar, planejava, arquitetava minuciosamente meus próximos dez anos.
E agora, com quase trinta, passo a relembrar meu bairro. Bairro simples, com recursos escassos.
Biblioteca tínhamos, mas era tão longe e inviável de ir, sem contar que fiquei sabendo da sua existência faz menos de um ano.
Escola. Infelizmente, a rede pública não conseguia dar vazão aos estudos das crianças, eu mesma aprendi a ler e escrever com mais ou menos 10 anos de idade.
Saneamento básico, lembro-me muito bem que uma tia minha vivia com um esgoto aberto em frente à sua casa.
E, infelizmente, no meu bairro, na rua de baixo, tínhamos envolvimentos com drogas e erros de todo tipo. Perdi alguns próximos nessa rua.
Quando se é criança, essa realidade nem sempre é um problema… problema. Gastar quase duas horas para ir a Santo Amaro em pé no ônibus era até motivo de brincadeira, sem contar quando se podia passar sob a catraca.
O problema é quando nos tornamos adolescentes, e ninguém consegue explicar, racionalmente e com palavras simples, sobre o porquê da desigualdade social.
“Senhora, senhora.” Nossa, senhora eu? Alguém estava solicitando que eu saísse dos meus pensamentos internos.
Uma das meninas estava me chamando. Ela dizia que fazia poemas e que era boa nisso. Foi muito interessante ouvir, pois eu na mesma idade dela amava escrever, fazia poemas também. Tenho o meu caderno de anotações até hoje guardado.
Quando eu estava saindo da ala, essa mesma mocinha me puxou e insistiu que eu lesse um dos poemas que ela havia escrito. Vi então um papel Kraft estendido na parede com uns versos escritos em preto. O título era sobre o Preconceito.
Sabe, aquilo me deu um nó na garganta. Sim, meu amor, o preconceito. Além da luta contra o mínimo para sobreviver, para estudar, para tornar nossos sonhos possíveis, ainda temos o preconceito…
Caminhando. Entre as portas e cadeados que novamente voltavam a se abrir, tive a certeza de que em cada uma daquelas meninas tinha um pouco de mim, um pouco dos meus quinze anos, e se eu não estive lá, foi apenas porque tive a sorte de morar na rua de cima.
Por essa razão, nada mais que necessário fazer parte de um projeto que busca desenvolver e tornar reais os sonhos dessas meninas. Um projeto que diz que é possível… e estende a mão a elas.

Texto da Sara Almeida Vieira Monteiro, advogada, voluntária do Instituto Mundo Aflora.

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