Renato Eliseu e Marcelo Boscoli

30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

A 30 anos o Brasil fez uma escolha que mudou os rumos da política pública da infância e adolescência em nosso país, promulgando aquele que seria, e ao nosso ver ainda é, a mais importante legislação infraconstitucional do país: O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.  Um compêndio com todos os direitos dessa população, mas também com todas as responsabilidades e responsabilizações, dos governos, das famílias e da sociedade para com esses “novos cidadãos”.

Mais do que uma “decisão” por promulgar uma lei, foi uma escolha por ouvir os movimentos sociais, as comunidades, os especialistas, os organismos internacionais e declarar que a Criança e Adolescente em nosso país são “prioridade absoluta”, exemplo que posteriormente foi seguido por diversos países do mundo, colocando nosso país na fronteira dessa discussão.

Entre as diversas inovações presente no ECA está a criação da Medida Socioeducativa, uma contradição à ideia de prisão, a ser aplicada aos adolescentes, entre 12 e 15 anos, que estão em conflito com a Lei.

Uma contradição, pois segundo o próprio estatuto, essa prática de reabilitação do ofensor, deve necessariamente ser acompanhada do reforço de seus direitos, entre eles o direito de “ser educado e cuidado sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante” pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas, sendo esses , segundo a mesma lei encarregados “de cuidar deles, tratá-los, educá-los e protegê-los”.

Contraditório também por entender que um adolescente que comete um ato infracional o faz, na maior parte das vezes, por que o próprio Estado em algum momento ou em vários, na ainda breve história desse ser humano, foi o próprio violador do direito, não garantindo acesso à educação, saúde de qualidade, fornecendo assistência social, proporcionando cultura e tantas outras políticas públicas. O Estado reconhece seu erro e tenta usar o remédio da educação e do cuidado para reverter essa situação.

Na criação das medidas socioeducativas o Estado ainda reconhece a situação particular de desenvolvimento em que se encontra o adolescente, e assim assume que para cuidar dos casos de atos infracionais cometidos por esse público são necessários, além do olhar para os contextos, instituições altamente especializadas em todo o “sistema de garantia de direitos”, fazendo assim com que órgãos do sistema de justiça (Tribunais de Justiça, Ministério Público e Defensorias) e forças de segurança, além de diversas instituições de executivo e organizações do terceiro setor, passassem a ter áreas especializadas nas aplicações dessas medidas. Um pequeno parêntese aqui, somente para explicar ao leitor, que a medida socioeducativa pode ser cumprida de diversas formas, tanto em meio aberto como em meio fechado (com privação de liberdade), esse último por meio das internações.

Contudo e infelizmente, como parte das políticas no Brasil, aquilo que era uma inovação e uma possibilidade da reconstrução da história de vidas desses adolescentes, foi se perdendo no tempo, e o resultado foi que na prática essas instituições foram cada vez mais se aproximando do sistema penitenciário, reproduzindo inclusive algumas práticas adotadas nesse sistema e como resultado tivemos a transformação desses centros em “pequenos presídios”.

Bem ao estilo do jargão “sou brasileiro e não desisto nunca” em 2012, criou-se o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamentando, por exemplo, como deveriam ser e como deveriam funcionar as instituições executoras das medidas. Legislação que foi logo em seguida acompanhada da criação de um planejamento de longo prazo de dez anos, o Plano Decenal, com objetivos e metas para efetivação do ECA e do próprio SINASE. Apesar do avanço e da importância dessas medidas podemos afirmar que foi uma tentativa em vão.

O fato é que apesar de milhares de trabalhadores preparados e dedicados, os estados voltaram a ser o principal violador desses direitos, não cumprindo os direitos básicos estabelecidos pelos legisladores, e fazendo com que esses espaços, que por vezes custam valores muito altos maiores que as mais caras escolas de centros urbanos como o de São Paulo, ou ainda dependendo do tempo de internação podem chegar a valores de casas que poderiam abrigar esses mesmos adolescentes ou terem custos similares ao de estudarem no exterior, sejam pouquíssimos eficazes.

Veja que aqui não estamos criticando o valor investido, muito pelo contrário, nosso entendimento é que esse seria quase indenizatório pelas omissões de direitos sofridas, mas o fato é de que esses recursos são utilizados sem eficácia nenhuma, visto que muitos desses adolescentes entram nesse sistema analfabetos e assim permanecem até sua desinternação, entram desempregados e saem com expectativas ainda menores de conseguir qualquer vaga no mercado de trabalho para conseguirem mudar sua condição socioeconômica, ou até entram saudáveis, mas por vezes são desinternados com traumas físicos e mentais decorrentes de práticas violentas similares as de torturas. Tudo isso sobre muros altos, regras (mesmo que não escritas) e baixa transparência que impedem com que a população e por vezes os próprios pais desses adolescentes saibam o que ocorre no interior desses espaços, ou até mesmo não conseguindo trazer evidências dos trabalhos realizados, por não conseguirem por exemplo, ter índices fidedignos das suas taxas de reintegração (quando o adolescente volta a cometer outros delitos, sendo novamente internado, preso no sistema penitenciário ou mesmo morto).

Infelizmente também não se seguiram inovadores os modelos de tratamento dado a esses adolescentes nos sistemas educativos, que no geral, em contradição com próprio ECA, tratam os mesmos a partir de uma perspectiva da delinquência juvenil (muito usada nos EUA), não propiciando aos mesmos autonomia, responsabilidades e direitos, como hoje são demostrados necessários pelos estudos da criminologia e pelos dos modelos de reabilitação mais holísticas como, o hoje debatido modelo “Good Lives Model”, e como são as recomendações para jovens privados de liberdade do Comitê Europeu para Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamento Desumanos ou Degradantes, como mostram as competentes pesquisas de professores doutores como: Edwar Mulvey, Carol Schubert, Candice Odgers, Donald Arthur Andrews, Edward Latessa, Francis Cullen, Paul Gendreau entre muitos outros.

Por fim, muito temos a comemorar por esses trinta anos de ECA, mas sabemos que muito mais ainda temos que avançar na busca pelos direitos dessas crianças e adolescentes, em especial desses adolescentes que se encontram mais vulneráveis como os negros, os pobres, as mulheres, indígenas, quilombolas entre outros. Se o apagar da vela desses trinta anos nos dá o direito de fazer um pedido, o nosso pedido com esse texto é que o ECA seja respeitado, não só nas medidas socioeducativas em todas as etapas de direitos desses nossos “novos cidadãos”, assim como em todas as fases de crescimento e desenvolvimento de nossas crianças e adolescentes desse país.

 

Texto escrito por: Renato Eliseu, Bacharel em Gestão de Políticas Públicas (USP). Mestre pelo programa de pós-graduação em Integração da América Latina (USP) e mestre em Gestão de Políticas e Organizações Públicas (UNIFESP) . Especialista (MBA) em Gestão Estratégica e Econômica de Projetos (FGV) SP. Atualmente é professor na Pós-Graduação (lato sensu) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP) , já foi membro do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA)

Marcelo Boscoli, Bacharel em Ciências Econômicas pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (2014), com ênfase em Economia Política. Pós Graduado em Ciência Política pela FESPSP – Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2017). Atualmente é Sócio da empresa Argo Consultoria e Assessoria Ltda, responsável pelo planejamento e acompanhamento de projetos na área de assessoria administrativa e financeira. Já foi responsável pelos processos de licitações na Fundação Paulistana de Tecnologia e Cultura ligada a Secretária de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo da Prefeitura de São Paulo.

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