A guerra invisível: o abismo social das crianças no Brasil
Mundo Aflora Em um mundo onde todos se mobilizam em solidariedade às crianças vítimas de guerras, é necessário refletir sobre
Muitas pessoas me perguntam como podem ajudar a mudar a sociedade. Percebo o desejo genuíno de quererem ajudar mas não sabem por onde começar. Também ouço de pessoas que trabalham ha muitos anos no campo social, em órgãos públicos e em organizações sociais, que amam o que fazem mas muitas vezes desanimam por não saberem se o trabalho delas está fazendo alguma diferença de fato. Acredito que se colocar no papel de colaborar para o meio em que vivemos e convivemos nos faz exercer o pertencimento e a cidadania.
Segundo o jurista Dalmo de Abreu Dallari, “a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo.” Compreender que sou parte de um todo e participar ativamente para uma sociedade mais justa e igualitária no poder de decisão no meu país é o que me motivou a direcionar todo o meu trabalho para o desenvolvimento e transformação social. E, assim como diversas pessoas que não conseguem ver se existe impacto positivo no trabalho que faço, me questionei se o que estava fazendo tinha de fato algum benefício para as pessoas para quem trabalhava. Durante esses 17 anos trabalhando com meninas em alto risco e vulnerabilidade, principalmente dentro de medidas socioeducativas, aprendi algumas coisas que acredito que valem a pena ser compartilhadas:
Privilégio: Quando, aos 20 anos, entrei pela primeira vez em um centro de privação de liberdade para meninas, me questionei profundamente o porquê delas estarem presas e eu não. Como adolescentes tivemos experiências similares mas por termos cor da pele, condições socioeconômicas e geográficas diferentes, elas estavam cumprindo um medida socioeducativa e eu não. Entendi naquele momento que a minha existência é diferente da delas mesmo que a Constituição Federal diga que temos os mesmos direitos. O nome disso é privilégio.
Mudança leva tempo: Nestes 17 anos que trabalho dentro de medidas socioeducativas com meninas, demorei 12 anos para expressar em voz alta um sonho que tinha de auxiliar essas meninas nas suas saídas, oferecendo oportunidades para que elas possam sonhar e realizar seus projetos de vida. Demorou, mas há 4 anos nasceu o Instituto Mundo Aflora. E cada projeto dentro desse contexto leva um tempo para ser feito e isso me permitiu exercitar minha paciência, confiança e flexibilidade. Mudanças acontecem devagar e levam o seu próprio tempo para acontecer. Apesar de cansar, parar diante as injustiças diárias não é uma opção. Mas é necessário pausas para descansar e recuperar a energia e motivação.
Gota no balde: Ouvi da minha mentora, a Dra. Stephanie Covington, uma história sobre o impacto que temos quando trabalhamos com mudança social. Quando se fala em transformação pessoal, nunca sabemos qual gota no balde de uma pessoa somos. Se somos a primeira, que traz uma perspectiva nova mas que nãO causa uma mudança imediata. Se somos a gota quando o balde já está meio cheio e conseguimos ver algumas mudanças de comportamento. Ou se somos a ultima gota no balde de uma pessoa que vemos de perto as diferentes decisões e resultados dessas escolhas. E isso não importa tanto. O importante é sabermos que somos uma gota no balde de alguém. Se tivemos a sorte de presenciar a transformação de uma pessoa na nossa frente, isso tem a ver com todas as pessoas que impactaram positivamente essa pessoa ao longo de um período e a capacidade que ela teve de assimilar essas novas experiências.
Me lembro quem foram as pessoas gotas no meu balde. Muitas dessas gotas foram as meninas que atendemos em privação de liberdade ou que já estão no mundão. Principalmente a menina, que vou chamar aqui de Ana*, que saiu da privação de liberdade e pediu ajuda para pagar a faculdade. Pensei comigo, por que não podemos ter mais Anas por ai? Demorou mas hoje ela sabe que é a razão do Instituto Mundo Aflora existir e que impactou a vida de tantas outras meninas. Muitas meninas que participaram das nossas atividades dizem que nós e os nossos parceiros, inclusive alguns servidores que acompanharam elas durante o período de internação, foram as gotas nos baldes delas.
Para trabalhar com a transformação humana é necessário criar o ambiente e o tempo para que a pessoa assimile o cuidado, o amor e o reconhecimento da humanidade comum a nós. E ao mesmo tempo, utilizarmos os privilégios que temos para fazer as mudanças necessárias ao nosso redor. Isso requer muita paciência, conosco e com o sistema em que vivemos, além de flexibilidade. E talvez também uma pitada de confiança que mesmo que nosso trabalho termine, terão outras pessoas que continuarão enchendo positivamente o balde das pessoas que nos importamos.
Quem foi a sua gota no balde? Deixe ela saber disso.
*nome fictício.
Por Renata Mendes, fundadora e presidente do Instituto Mundo Aflora
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